Apresentação >>
Angela Roberti (UERJ) // Edna Santos (UERJ)
Rio de Janeiro, verão de 2012/2013.
No período compreendido entre o final do século XIX e início do XX, o Brasil foi palco de experiências transformadoras: mudou o sistema político e o regime de trabalho, obras foram executadas, cidades modernizadas, a entrada de imigrantes foi ampliada, a circulação de ideias e mercadorias foi intensificada, o ambiente político foi renovado, a atmosfera intelectual foi potencializada e novas relações, tensões e lutas se impuseram produzindo conflitos e estranhamentos.
Nessa época de transição efervescente, o país começou a viver o lento, porém definitivo, processo de expansão das relações capitalistas, permitindo, de um lado, a formação e a ascensão da burguesia, e de outro, o aumento quantitativo do proletariado, demarcando, em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, nas primeiras décadas do século XX, os contornos da chamada “questão social”.
Paulatinamente, o estabelecimento desse campo de forças sinalizou a necessidade de organização de formas de ação das crescentes classes trabalhadoras. Tornou-se inevitável a aproximação entre esses grupos e o ideário anarquista, reforçado no país com a presença cada vez mais significativa de imigrantes, muitos dos quais ligados às atividades urbanas, com destaque aos setores comercial e oficinal.
O anarquismo, portanto, foi uma tendência hegemônica no início do movimento operário no país, com atuantes e combativas correntes organizatórias da classe trabalhadora urbana, principalmente, no eixo geográfico Rio de Janeiro-São Paulo, em fins do século XIX e décadas iniciais do século XX.
A história do anarquismo no Brasil encontra-se, portanto, fortemente vinculada à constituição do movimento operário, aparecendo, por sua vez, associada à problemática da industrialização e da urbanização que se acelerou nessas cidades no início do século XX, dando visibilidade ao drama da existência dos trabalhadores diante das péssimas condições de vida e de trabalho a que estavam sujeitos.
As péssimas condições que caracterizavam o mundo do trabalho mantinham correspondência direta com o cotidiano do trabalhador fora do espaço da produção, estendendo-se por sua vida cotidiana. Os níveis salariais baixos contrastavam com o aumento do custo de vida, em especial com a alta constante dos gêneros alimentícios e dos aluguéis. O precário poder de consumo refletia-se no deficiente padrão alimentar e na insalubridade da maior parte das moradias. As deficitárias condições de saúde e higiene, assim como o difícil acesso à educação e até mesmo ao lazer, selavam o drama da existência operária no período de sua constituição social e cultural.
O movimento operário no Brasil, bem como os princípios e as ações libertárias, encontraram nas péssimas condições de vida e de trabalho a que os trabalhadores estavam submetidos um terreno fértil para se disseminar. Esse contexto de dificuldades agitava as cidades brasileiras, sobretudo Rio de Janeiro e São Paulo, embalando o movimento operário em geral e fermentando a militância anarquista em particular, de modo a impulsionar os anarquistas a agirem e interagirem enquanto sujeitos históricos, verdadeiros testemunhos de uma época historicamente determinada.
Por intermédio da publicação de jornais, boletins, panfletos e livros, da organização de grupos, conferências, comícios e agitações populares e da participação ativa e permanente no movimento operário, o anarquismo, nas suas diversas orientações, expandiu-se no país, tornando-se, nas duas primeiras décadas do século XX, a corrente mais forte no interior do movimento operário. Muito cedo, portanto, passou a incomodar os poderes estabelecidos, atraindo, por conseguinte, a atenção policial.
Os libertários atuantes no Brasil implementaram, também, um conjunto de atividades culturais como parte de um amplo projeto de mobilização, conscientização e engajamento dos grupos de explorados e oprimidos. Escolas anarquistas foram fundadas, círculos de estudo organizados, conferências proferidas, folhetos e panfletos publicados e lidos, romances e folhetins editados, poemas declamados e musicados, peças teatrais encenadas e charges publicizadas. Enfim, foi incrementado todo um conjunto de práticas sociais e culturais com o intuito de melhor difundir as ideias e ideais dos libertários e sua crença na capacidade de homens e mulheres criarem um mundo novo, diferente, igualitário, solidário, livre, auto-gestionário por excelência e, por isso mesmo, acreditava-se, mais feliz.
Nos últimos anos, pesquisas sobre o mundo do trabalho e investigações acerca das mulheres trabalhadoras contribuíram para fazer o anarquismo sair da sua invisibilidade, outorgando-lhe importância para a história do movimento operário e das lutas sociais e políticas no país. A organização de diversos arquivos e centros de pesquisa sobre o tema abriu possibilidades para a descoberta de múltiplas e ricas experiências libertárias, confirmando essa valorização e tendência. Essa produção, entretanto, não tem seu alcance nas salas de aula de História dos ensinos mais básicos, permanecendo restrita, muitas das vezes, apenas aos pesquisadores interessados no tema.
A proposta para a produção de um material multimídia sobre o Anarquismo no Brasil voltado para a docência do ensino básico público é uma iniciativa do Laboratório de Pesquisa e Práticas de Ensino (LPPE) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas (PPGLCH) da UNIGRANRIO e celebra tais inquietações. Da mesma forma, procura atender às necessidades de um campo pouco abordado no ensino de História nas escolas, que envolve, inclusive, o processo de formação da classe trabalhadora no Brasil e suas lutas sociais e políticas no cenário que caracterizou os anos iniciais da vida republicana do país.
Colocado o desafio, as organizadoras desse material, inicialmente, entraram em contato com especialistas e estudiosos do tema a fim de sensibilizá-los para o projeto, de modo a fazê-los contribuir com artigos voltados à reflexão do anarquismo em diversas perspectivas. Felizmente conseguimos a adesão de diversos colegas e companheiros que têm procedência institucional diversa, áreas de formação e atuação múltiplas e perspectivas teórico-metodológicas diferentes, mas que se mostraram ansiosos por explorar as experiências individuais ou coletivas de homens e mulheres anarquistas, conhecidos ou anônimos, frequentemente ignorados ou mencionados apenas superficialmente.
Nesse sentido, o material ora apresentado reúne algumas experiências de pesquisa sobre o anarquismo no Brasil em variadas dimensões, com o propósito de ampliar os limites do tema no âmbito escolar e estimular novas possibilidades de investigação e diálogo.
Distintos quanto à formulação das questões, os estilos da escrita, a tipologia das fontes, o recorte temporal, a delimitação temática, os artigos traduzem algumas inquietações e indagações presentes entre os profissionais envolvidos com pesquisa e a docência, muitos dos quais inseridos, também, direta ou indiretamente, nos meios libertários.
O material multimídia encontra-se organizado em um movimento triplamente direcionado: [1] um conjunto de sete textos cujo eixo temático é o anarquismo em variadas dimensões; [2] um roteiro histórico-geográfico a partir de pequeno vídeo contemplando alguns dos lugares privilegiados dos encontros coletivos e das trocas, materiais e simbólicas, que se davam entre os militantes anarquistas na cidade do Rio de Janeiro; [3] uma expressiva entrevista que traça um panorama histórico do anarquismo no Brasil das origens aos dias atuais.
Duas partes dividem este material: os textos e os vídeos. Na primeira parte, contamos com sete textos. O cientista político Wallace Moraes, em Significado de Anarquismo, nos contempla com um texto fundamental e introdutório sobre a acepção das palavras anarquia e anarquismo, bem como suas principais ideias-força. Rafael Viana da Silva, Adenildo Daniel da Silva e Alexandre Samis, pesquisadores na área de História, em Sindicalismo e Anarquismo no Brasil, refletem sobre os primeiros tempos da militância, com destaque para as relações entre a luta operária e o movimento anarquista.Sublinham um pouco do jogo político que marcou associações, congressos operários, organizações anarquistas, greves e repressões, ressaltando a crise do sindicalismo e a perda do vetor social do anarquismo nos anos 1930 e suas manifestações nas décadas de 1940 e 1950. No artigo intitulado Anarquismo e Imigração, o historiador Carlo Romani e o pesquisador Milton Lopes, são responsáveis por explorar as experiências dos imigrantes, em especial italianos, portugueses e espanhóis, no movimento anarquista brasileiro, destacando sua contribuição nas lutas sociais do período e suas iniciativas libertárias originárias, como a fundação de colônias (Cecília, Cosmos e Guararema). Mulheres na Militância Anarquista, da historiadora Angela Maria Roberti Martins, nos apresenta algumas das inserções das mulheres no movimento anarquista que marcou a Primeira República no eixo geográfico Rio-São Paulo, destacando a contribuição feminina para a luta política travada e as atividades socioculturais implementadas no período. Enfatiza que as mulheres anarquistas tiveram uma participação ativa nas lutas sociais e políticas da época, projetando-se como testemunhas reveladoras da experiência feminina do anarquismo no Brasil. Com o graduando Antônio Felipe da C. M. Machado, o historiador Rogério C. de Castro e o pedagogo Silvério Augusto M. S. de Souza, responsáveis pelo texto Movimento educacional e pedagógico anarquista, somos conduzidos pelas iniciativas inovadoras dos libertários no âmbito da educação, na base da qual se prima pela autonomia e a emancipação do sujeito. Visitam precursores da educação libertária, mostrando que o projeto educativo libertário está intimamente ligado a um projeto de sociedade anti-autoritário, a partir de práticas baseadas no princípio da horizontalidade e de um clima de solidariedade capazes de fazer despontar a espontaneidade e a criatividade, responsáveis pela emancipação do sujeito e pela transformação social. O historiador Carlos Augusto Addor em Rio de Janeiro, 1918 – Insurreição Anarquista, explora a insurreição planejada por alguns militantes anarquistas que pretendiam reproduzir na capital federal da República brasileira a experiência russa: a Revolução Social pela via insurrecional. Propõe que apesar de traída, sufocada e derrotada essa experiência de insurreição anarquista produziu, em médio prazo, efeitos positivos para os trabalhadores, uma vez que as autoridades não podiam mais ignorar as reivindicações operárias, percebendo mesmo a necessidade e a urgência de atendê-las. A historiadora Mariana Affonso Penna e o pesquisador Renato de Souza Doria arrematam essa primeira parte discutindo o movimento anarquista na contemporaneidade no texto Anarquismo social no Rio de Janeiro Contemporâneo. Conferem visibilidade às manifestações e organizações libertárias na virada desse último milênio, em especial a partir da década de 1990, destacando o ascenso de uma onda global de protestos anticapitalistas, no interior dos quais encontram-se os anarquistas.
Finalmente, a segunda parte exibe dois vídeos: o primeiro, com o pesquisador Renato Ramos, foi filmado no centro histórico da cidade do Rio de Janeiro e, através de um roteiro histórico-geográfico, privilegia alguns dos lugares dos encontros coletivos e das trocas que se davam entre os militantes. Portadores, portanto, de um significado e de uma memória, esses lugares podem ser considerados rastros da experiência libertária entretecida pelos militantes na cidade antiga, lócus privilegiado da diversidade humana e cultural que os diferenciava e identificava. O segundo vídeo consiste em uma entrevista com o pesquisador e militante libertário Alexandre Samis. Filmado na Biblioteca Social Fábio Luz por Gabriel Amorim, o vídeo apresenta um panorama do movimento anarquista no Brasil, dividido em quatro momentos: I) das origens do anarquismo no Brasil, em fins do século XIX, até ± 1930; II) de ± 1930 a ± 1980; III) de ± 1980 a ± 1990; IV) O anarquismo na contemporaneidade, com três dimensões distintas: a inserção em favelas; a atuação junto aos sindicatos e as demais atividades do anarquismo contemporâneo.
Nessa perspectiva, o propósito central desse material multimídia, produzido pelo LPPE, é mostrar algumas das manifestações do movimento anarquista no país. Destacam-se, no conjunto, as principais idéias e experiências libertárias de homens e mulheres que se dedicaram a exprimir a eterna rebeldia humana a respeito da autoridade, da opressão, da exploração, da injustiça e da desigualdade, questões das mais fundamentais ao ser humano, e ainda sem solução, o que faz o tema permanecer instigante e a reflexão necessária. Que essa constatação possa incitar a reflexão e (re)alimentar o sonho da igualdade com liberdade em todas as dimensões, dando à vida seu sentido pleno.
Para terminar, sublinhamos nosso reconhecimento e nossa gratidão a todas e todos que direta e indiretamente contribuíram para a realização intelectual e artística deste material multimídia. Aos integrantes do Núcleo de Investigação Social da Universidade Federal Fluminense (NIS-UFF) e do Núcleo de Pesquisa Marques da Costa (NPMC), agradecemos pelas contribuições. Contrariando a lógica do tempo, ultrapassando as exigências do produtivismo acadêmico e superando as adversidades internas e externas a este trabalho, formamos uma equipe que se responsabilizou pela reunião e organização dos textos, produção dos vídeos, revisão dos originais, pesquisa de imagens e disposição e criação gráfica. Toda essa produção não seria possível sem a estimulante convivência no LPPE (IFCH-UERJ), entre funcionários, pesquisadores e alunos; esses últimos, sempre responsáveis por nos instigar e manter vivo nosso entusiasmo.
Boa leitura! [voltar à página inicial]