#3 Anarquismo e Imigração
Carlo Romani //
Milton Lopes

Carlo Romani é professor do Departamento de História da UNIRIO, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, e Milton Lopes é pesquisador do Núcleo de Pesquisa Marques da Costa da Biblioteca Social Fábio Luz

        

         Num interessante artigo publicado online em www.revistadehistoria.com.br sobre a educação anarquista, o professor José Damiro de Moraes comentava que os grupos políticos e econômicos dominantes no Brasil do início do século XX criaram e divulgaram a tese segundo a qual o anarquismo seria uma “planta exótica” – vinda da Europa, não teria clima favorável para se desenvolver por aqui. A comparação biológica entre um movimento de ideias em prol da liberdade e da igualdade entre as pessoas, como é o anarquismo, a uma planta estranha já demonstra a enorme incapacidade dos mandantes conservadores brasileiros de lidarem com ideias novas, ou mesmo de aceitarem as mudanças sociais trazidas pela profunda transformação por que passava a sociedade naquele período posterior à Proclamação da República. O país havia recém-saído de um regime político monárquico e ainda era governado por uma elite escravocrata. Herdeira do antigo modo de vida da casa grande nos engenhos e nas fazendas de café, pouco acostumada estava a lidar com trabalhadores livres. Porém, apesar desse atraso elitista, o novo século abria-se para um ciclo social diferente, marcado pela nascente industrialização e crescente urbanização.

         Foi nesse contexto de mudanças na última década do século XIX e nas duas primeiras do seguinte que se expandiu continuamente a imigração ao Brasil, particularmente aquela de trabalhadores para as regiões agrícolas do sul e sudeste. Logo, a difícil vida na colheita de café, um trabalho ainda influenciado pelos modelos escravistas, levou muitos imigrantes a procurarem oportunidades nas cidades. Notadamente em São Paulo, que crescia freneticamente movida pelas indústrias criadas através do capital arrecadado com as exportações do café, mas, também no Rio de Janeiro, em Curitiba, Porto Alegre, Santos, ou Belo Horizonte, tivemos um rápido incremento populacional trazido por essa imigração que modificou o perfil social das cidades. Uma comunidade de trabalhadores imigrantes, antes minúscula, agora crescia e se misturava aos trabalhadores brasileiros já estabelecidos, muitos deles escravos libertos, para formar a nova classe operária, protagonista do surto de desenvolvimento industrial em curso no país.

         Em uma parte significativa do Brasil, a antiga sociedade de pequena mobilidade social como era a do período escravista passou a dar lugar a uma sociedade de classe, moderna, baseada no trabalho assalariado. Na organização fabril, onde estava envolvido um grande número de operários, a competição pelo lucro era exercida através da redução dos custos de produção com a intensa exploração do trabalhador, o que acirrou a luta de classes. De um lado, o patronato querendo obter o máximo de lucro possível através da baixa remuneração salarial e obrigando a jornadas extensas de trabalho, e do outro, os trabalhadores que começavam a lutar de modo conjunto na defesa de seus interesses comuns. Essa nascente organização de trabalhadores girou, primeiramente em torno de círculos e grêmios operários e depois se consolidou nos sindicatos de ofícios (chapeleiros, da construção, gráficos), precursores dos atuais. Desde as duas últimas décadas do século XIX sabe-se da existência de diversos modelos de associações trabalhistas, muitas delas beneficentes com o objetivo imediato de criar uma caixa de auxílio mútuo, outras promovendo atividades educativas e culturais. A partir do começo do século XX elas passaram a surgir em grande quantidade e em todos os setores da atividade fabril e da construção civil defendendo de modo mais intenso os interesses trabalhistas e combatendo a exploração no trabalho.  Os grêmios e sindicatos isolados começaram a se unir, criando regionalmente federações operárias, em São Paulo e no Rio de Janeiro (FOSP E FORJ) e uma confederação operária brasileira (COB).

         Essa crescente organização trabalhista foi influenciada por ideologias, ou modos de compreender e viver o mundo a partir de concepções político-sociais socialistas e anarquistas que, apesar de já serem conhecidas e praticadas pelos trabalhadores brasileiros, receberam uma contribuição substancial com a chegada de milhões de imigrantes estrangeiros ao longo de pelo menos quatro décadas. O anarquismo foi uma dessas tendências ideológicas ligada aos trabalhadores que mais se difundiu no Brasil daquela época, sendo abraçada por boa parte dos operários e por isso, incomodou bastante ao patronato e aos mandantes políticos. Então, entende-se assim porque chamar o anarquismo de “planta exótica”. Isso se deveu ao fato de que boa parte dos imigrantes era ligada, seja diretamente como ativista ou indiretamente como simpatizante, a esse movimento em seus países de origem e, evidentemente, continuaram propagando suas ideias por aqui. Essa planta exótica, ou seja, a concepção anarquista de sociedade, que segundo os mandantes não germinaria em solo tropical, pode ser considerada a principal responsável pela organização do movimento operário brasileiro entre os anos de 1900 e 1920. Nesse período histórico, quando uma grande quantidade de sindicalistas se dizia anarquistas, foi cunhada a expressão anarco-sindicalistas para denominar os anarquistas que atuavam nos sindicatos.

         Os principais grupo de imigrantes – italianos, espanhóis e portugueses – mantinham em suas terras de origem um convívio constante com movimentos socialistas, anarquistas e sindicalistas, alguns deles já bastante fortes e organizados. Quando aportaram ao Brasil, muitos desses imigrantes já eram ligados a círculos anarquistas em suas cidades natais e continuaram promovendo seu ideário nas comunidades de imigrantes aqui radicadas. Através de veículos de informação como jornais, panfletos e folhetos difundiam a idéia anárquica, e montando escolas livres, as chamadas escolas modernas, auxiliavam a educação dos filhos dos trabalhadores. Com o passar dos anos aquilo que no início estava restrito aos compatriotas foi disseminando-se junto a todos os trabalhadores, nacionais e estrangeiros, que compartilhavam as moradias nos bairros mais pobres e operários. O anarquismo tornou-se assim, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, um movimento social urbano de destaque e com significativa penetração popular.

         O grupo de imigrantes que podemos dizer teve uma participação inicialmente majoritária na difusão do anarquismo foi o da comunidade italiana, em sua maior parte radicada em São Paulo. Desde o ano de 1891, o anarquismo já era uma realidade concreta no Brasil, quando houve a criação da comunidade experimental de imigrantes italianos no interior do Paraná, a Colônia Cecília, conhecida por colocar em prática uma organização social baseada na idéia da livre associação dos indivíduos, da autogestão da produção e da tomada coletiva de decisões. Giovanni Rossi, o idealizador dessa colônia foi um médico veterinário e agrônomo que acreditava numa sociedade livre sem patrões nem empregados, onde homens e mulheres trabalhariam e se divertiriam em harmonia, ou seja, uma sociedade anarquista. Dessa experiência que durou alguns anos saíram alguns dos anarquistas mais conhecidos no Brasil, como o pintor e jornalista Gigi Damiani, um dos líderes da primeira greve geral brasileira ocorrida em São Paulo em 1917, e Francesco Gattai, avô da escritora Zélia Gattai.

         Anarquismo e imigração são palavras que caminham juntas quando falamos da experiência italiana. Antes de tudo deve-se entender que na Itália, desde a década de 1870, dezenas e até centenas de organizações de trabalhadores, principalmente de operários, foram sendo criadas como resultado das ideias sobre a necessidade de uma revolução social para estabelecer um regime de igualdade e liberdade entre os humanos, promovidas por Bakunin e por integrantes da Associação Internacional dos Trabalhadores, mais conhecida apenas como Internacional. Foi uma época em que a luta de classe entre patrões e empregados na Europa ocorria de modo muito intenso e também muito violento, principalmente por parte do Estado e da perseguição policial praticada contra os trabalhadores que lutavam pela sua organização e por uma sociedade mais justa. Na Itália essa perseguição aos trabalhadores politicamente mais ativos ocorreu de forma muito dura até o início do século XX, obrigando muitos sindicalistas e ativistas políticos a emigrarem para os países mais ao norte da Europa, para os EUA, para a Argentina e o Brasil, como meio de escaparem das prisões e da morte certa. Além disso, as difíceis condições econômicas da Itália em fins do século XIX levaram a uma diáspora italiana mundo afora.

         Estima-se que cerca de dois milhões de italianos migraram para o Brasil, entre eles milhares de ativistas e simpatizantes do anarquismo, uma força política de grande penetração popular na Itália que teve em Errico Malatesta seu mais conhecido mentor. A particularidade do anarquismo italiano, em grande parte devida à propaganda realizada por Malatesta, era a de fazer um tipo de política voltado para os setores mais pobres da população através da ação direta, do uso do instrumento da greve geral, da educação libertária para a sociedade, e com um nível de organização suficiente para que as ações tivessem mais efeito, mas sem a constituição de hierarquias dirigentes a ponto de impedirem a emancipação dos indivíduos; em resumo esse é o anarco-comunismo.

         A maioria dos ativistas italianos que aportaram aqui no Brasil foi, principalmente, seguidora dessa tendência política do anarquismo. Entre as lideranças do movimento em São Paulo figuram nomes como os de Oreste Ristori, Gigi Damiani e Alessandro Cerchiai, que editaram o jornal La Battaglia entre os anos de 1904 e 1913, o jornal operário paulistano que alcançou maior tiragem. Muitos outros periódicos circularam nas ruas paulistas nesses anos: Caradura, La Birichina, O Amigo do Povo, Germinal, A Plebe, A Lanterna, A Batalha, para nomear só alguns. Todos esses periódicos promoveram um tipo de anarquismo onde a educação e a cultura eram instrumentos fundamentais para a emancipação e libertação dos indivíduos de toda forma de opressões sociais.

         A escola anarquista baseada nos métodos pedagógicos do catalão Francisco Ferrer cumpria papel importante para essa tomada de consciência libertária. Em quase todos os círculos sociais ligados aos grêmios e aos sindicatos operários em São Paulo e nas maiores cidades do interior paulista havia uma escola para os filhos dos associados. Administradas pelos próprios trabalhadores, geralmente eram mantidas por listas de apoio, uma prática anarquista de autogestão de suas instituições, que servia desde as escolas até as fábricas durante os períodos de ocupação operária.

         Além da imprensa e da escola, as festas, regadas a vinho, a baile, música e artes cênicas, ocuparam muito espaço entre os anarquistas imigrantes italianos. Nesses círculos sociais dos grêmios operários, geralmente eram organizados bailes nos sábados à noite cuja arrecadação era revertida para a continuidade da propaganda anarquista, para manter uma reserva financeira na época das greves, ou para ajudar na defesa de algum companheiro detido pela polícia. O teatro anarquista também era outro componente dessas festas, quando eram encenadas composições dramáticas como o Primeiro de Maio, do italiano Pietro Gori, em que se retratava o conflito de classe e a exploração capitalista do trabalho humano.

         Podemos considerar que as duas primeiras décadas do século XX foram um período muito efervescente para a propaganda anarquista e para a organização do movimento operário como um todo o que trouxe a conseqüente melhora da qualidade de vida dos trabalhadores. Contudo, ao mesmo tempo em que isso ocorria, incrementavam-se os mecanismos patronais e estatais de repressão. O combate às associações de trabalhadores começou a se desenvolver de modo mais intenso na década de 1910. A perseguição aos jornais operários com investidas policiais queimando os estoques e destruindo os equipamentos gráficos mostraram que o capitalismo não cederia facilmente às reivindicações e luta dos trabalhadores. Especificamente em relação aos estrangeiros o governo estadual em São Paulo, através do Secretário de Segurança Pública Washington Luiz, futuro Presidente da República, empreendeu feroz perseguição aos anarquistas, particularmente aos estrangeiros. Em 1907 foi promulgada a chamada Lei Adolfo Gordo de expulsão de estrangeiros que devido a brechas na redação não se mostrou muito eficaz, pois impedia a expulsão de estrangeiros que houvessem chegado há mais de três anos no país ou que já tivessem estabelecido família brasileira. E esses já eram a maioria, o que demonstra que a planta exótica anarquista já havia fincado sólidas raízes em clima tropical.

         Entre os anarquistas perseguidos pela polícia paulista consta a história curiosa de Oreste Ristori que desde 1909 combatia de modo agressivo os padres da Igreja Católica que acobertaram o crime contra a órfã Idalina cometido pelo padre Faustino Consoni no Orfanato Cristovão Colombo. A denúncia seguida durante dois anos pedindo a condenação do padre nas páginas de La Battaglia apontava para outro campo de luta dos anarquistas: a crítica contra os abusos e a prática doutrinária da Igreja junto aos trabalhadores. O anticlericalismo de Ristori foi motivo de violenta perseguição policial e ele, antes de fugir para a Argentina, teve de se refugiar no Rio de Janeiro a partir de meados da década de 1910. Na capital federal da República Ristori encontrou um anarquismo bastante organizado resultado de anos de contato entre os trabalhadores cariocas e os imigrantes.

         Se a influencia italiana foi decisiva para o surgimento do movimento anarquista no Brasil, principalmente em uma parte da região Sudeste do país (São Paulo) e na região Sul (Paraná e Rio Grande do Sul), outras correntes imigratórias também se fizeram presentes em maior ou menor escala no período clássico do anarquismo no Brasil. Os portugueses, que constituíam a corrente imigratória majoritária em outras regiões, como o Rio de Janeiro e o Nordeste (Recife) forneceram boa quantidade de militantes ao movimento nestas cidades. Os espanhóis, provenientes do país em que o anarquismo possuía uma grande presença política e social, também se fizeram bastante atuantes no cenário do movimento no Brasil na última década do século XIX e nas três primeiras do século XX.  Tanto no Rio quanto em São Paulo é provável que o número de militantes anarquistas de origem espanhola ocupasse o segundo lugar, perdendo apenas para os italianos em São Paulo e para os portugueses no Rio.

         A imprensa específica anarquista no Brasil, por sua vez, vai efetivamente surgir com o lançamento de uma série de jornais redigidos em italiano, publicados a partir de 1892 em São Paulo, no Paraná e no Rio Grande do Sul.  Estes primeiros militantes logo sentem a necessidade de que sua propaganda também alcance os trabalhadores de língua portuguesa.  Mas o Brasil só virá a ter jornais anarquistas redigidos e impressos em português ao final do século XIX (provavelmente O Libertário em São Paulo e O Despertar no Rio de Janeiro, ambos em 1898).  No entanto, os jornais anarquistas em português muitas vezes contam com seções em italiano ou espanhol e jornais anarquistas em idioma italiano continuam circulando em São Paulo durante as primeiras décadas do século XX. O jornalismo anarquista em língua portuguesa no Brasil vai se consolidar e ampliar seu alcance nos anos entre 1902 e 1904, quando é editado em São Paulo o jornal O Amigo do Povo pelo destacado militante de origem portuguesa Neno Vasco (1878-1920).  Vasco, que morou no Brasil durante quase dez anos, foi ainda responsável, também em São Paulo, pela revista Aurora (1905) e pelo periódico A Terra Livre (1905 a 1910, editado por um curto período de sua existência no Rio, tendo posteriormente regressado a São Paulo).

         É também em São Paulo que em 1899 surge o jornal El Grito del Pueblo, redigido em espanhol, mas que no ano seguinte aportuguesa-se para O Grito do Povo. No Rio o primeiro jornal anarquista O Despertar terá como responsável um operário chapeleiro de origem espanhola, José Sarmento Marques que seria um combativo elemento na categoria a que pertencia. Sua experiência na imprensa operária continuará justamente em O Baluarte, editado no Rio entre os anos de 1907 e 1910 e O Chapeleiro em São Paulo em 1914 e 1918, ambos órgãos da categoria.  Outros imigrantes espanhóis virão a ser grandes incentivadores, colaboradores e coordenadores da imprensa anarquista, operária, anticlerical e/ou sindical como Manuel Moscoso, Alfredo Vasquez, Juán Más y Pi, Eduardo Palácios. Everardo Dias, José Martins, José Romero.

         Já o segundo jornal anarquista a circular no Rio, O Protesto, que apresentou maior longevidade do que O Despertar, ficou a cargo de um jovem gráfico português de 21 anos de idade, J. Mota Assunção (1878-1929), responsável pelo lançamento de algumas outras publicações anarquistas nos anos seguintes.  Mota, ainda jovem integrou também a comissão redatora do 1º Congresso Operário Brasileiro (realizado no Rio em 1906), sendo nele um dos representantes de sua entidade de classe, a Liga das Artes Gráficas.

         Português era também José Marques da Costa, marceneiro que emigrou para o Brasil, tendo, nos anos de 1919 a 1920, militado em Belém do Pará e ali editado jornais anarquistas e sindicalistas revolucionários como A Revolta, A Voz do Trabalhador e O Semeador. Tendo se radicado no Rio de Janeiro, nesta cidade dirigiu a revista Renovação (1921-1922), o jornal O Trabalhador e em 1923 foi o responsável pela coluna trabalhista do jornal diário A Pátria, sendo deportado em 1925.

         Foi nas ruas de Belém do Pará (outro grande centro de imigração portuguesa) que o escritor Ferreira de Castro (1898-1974), tendo vindo para o Brasil aos doze anos de idade para trabalhar em um seringal no interior do Amazonas, encontrou a solidariedade nos sindicatos livres da cidade, de inspiração sindicalista revolucionária. Passando por momento de grande dificuldade para sua sobrevivência Castro, em contato com os libertários locais, se tornou anarquista, ideologia que conservou até seu falecimento. Ferreira de Castro é considerado um dos maiores escritores portugueses, um precursor do neo-realismo na literatura, tendo mesmo em determinado período seu nome sido considerado para indicação ao Prêmio Noel de Literatura. Uma de suas obras, Emigrantes (1928)é um romance sobre a vinda de um português para o Brasil e suas desilusões.

         Em termos de mídia impressa, o livro e o folheto foram poderosas ferramentas de divulgação e propaganda do ideal anarquista. Tiveram intensa circulação no Brasil não só em português (material proveniente de Portugal, em sua maior parte, uma vez que sua publicação no Brasil era mais precária), mas também em italiano e espanhol. Tais edições eram lançadas em Portugal, Espanha e Itália por grupos anarquistas ou mesmo por editoras comerciais (como a Guimarães em Portugal). Importados por grupos brasileiros, aqui eram distribuídos.

         Escritores anarquistas que iniciaram sua produção literária a partir do início do século XX, hoje são considerados como os fundadores da literatura social brasileira. Dentre eles, Avelino Foscolo (1864-1944), nascido em Minas Gerais e descendente do escritor italiano Ugo Foscolo. Farmacêutico de profissão, depois de uma juventude em que trabalhou como mineiro nas minas de Morro Velho e foi artista mambembe, Foscolo fundou jornais anarquistas na cidade de Tabuleiro Grande (atual Paraopeba), escreveu peças para o teatro libertário, como O Semeador e diversos romances de cunho social como O Mestiço, A Capital, No Circo e O Jubileu.

         Ao final do século XIX em uma das primeiras greves de vulto no Rio de Janeiro, ocorrida em março de 1898, os empregados dos bondes, então principal meio de transporte coletivo urbano, entraram em greve por maiores salários, revelando já um grau de organização surpreendente para a época. Vários dos ativistas deste movimento foram presos e acusados de serem anarquistas. Eram em sua grande maioria portugueses. Estes pioneiros parecem haver inaugurado uma tradição de militância entre os trabalhadores portugueses na cidade, que se estenderia até década de 1940 e 1950, com a chegada de anarquistas portugueses exilados do regime fascista em sua terra (Roberto das Neves, Pedro Ferreira da Silva, Edgar Rodrigues, entre outros).

         Dentre os militantes anarquistas de procedência espanhola que militaram no movimento operário do Brasil podem ser destacados alguns cujas atividades se desenvolveram no porto de Santos.  Naquela cidade, conhecida como a “Barcelona brasileira” pelo elevado número de militantes anarquistas que ali existiam, os trabalhadores viviam em constante conflito com a poderosa Companhia Docas de Santos, que dominava a cidade e explorava implacavelmente a mão-de-obra que para ela trabalhava. Neste sentido pode ser citado João Perdigão Gutierrez, nascido nas ilhas Canárias em 1895, destacando-se em assembléias operárias e promovendo greves e comícios, Perdigão teve que fugir várias vezes de Santos, refugiando-se no Rio, em São Paulo e em Porto Alegre. Acabou por fixar-se em Sorocaba. Florentino de Carvalho (Primitivo Raimundo Soares), por sua vez, chegou ao Brasil aos seis anos de idade em 1889. Entrou para a Força Pública de São Paulo. chegando a cabo e requerendo baixa ao ler o livro A Conquista do Pão do teórico anarquista russo Piotr Kropotkin. Tendo ingressado no movimento sindicalista de Santos ao início do século XX, militou também na Argentina de onde foi expulso em 1910, tendo sido resgatado do navio que o levava para Europa pelos trabalhadores do porto de Santos. Tendo colaborado e/ou dirigido várias publicações anarquistas, Florentino foi um grande doutrinador, tendo escrito alguns livros, a maioria dos quais destruídos pela repressão antes de serem publicados. Ele tornou anarquistas todos os membros de sua família e diversos de seus alunos, uma vez que se dedicou também à atividade de professor nas escolas.

         Militantes portugueses e espanhóis estiveram representados na administração e prática educativa das duas Escolas Modernas de S.Paulo, de acordo com o modelo de Ferrer. As escolas modernas, criadas a partir de 1901 pelo educador anarquista espanhol Francisco Ferrer, visavam a formar as crianças de uma maneira a que se tornassem seres livres e pensantes, tudo submetendo à análise concreta, sem influencia de dogmas ou superstições. A Escola Moderna número 1 tinha à sua frente Adelino de Pinho (português) e a número 2 Florentino de Carvalho.

         Os militantes anarquistas de origem italiana no Rio de Janeiro não foram muitos, como observado anteriormente, mas nem por isso sua contribuição ao movimento operário e anarquista foi menos intensa.  Dentre eles podemos destacar o casal Luís e Matilde Magrassi.  Gráfico de profissão, Magrassi fixou-se no Rio vindo de São Paulo por volta de 1904, aqui desenvolvendo intensa atividade, sendo figura importante no lançamento ou manutenção de diversos periódicos libertários e um dos principais organizadores do I Congresso Operário Brasileiro em 1906. Matilde Magrassi não foi apenas sua companheira, mas uma colaboradora constante da imprensa libertária, escrevendo e publicando vários textos. Pedro Matera, por sua vez, sapateiro de profissão, estabelece já na primeira década do século XX uma escola para operários e seus filhos de acordo com os ensinamentos de Ferrer no bairro então fabril de Vila Isabel, no Rio. Matera e a Escola Livre 1º de Maio vão se ligar estreitamente à história das lutas sociais do bairro, principalmente nos conflitos classistas com a fábrica de tecidos Confiança, poderosa indústria têxtil a dominar a região que congregava grande número de operários. Escrevendo peças para o teatro social anarquista, encenadas durante os festivais libertários,  Matera também vai dirigir um jornal específico anarquista, Liberdade, que circulou de 1917 a 1919, também publicado no bairro.

         No campo a influencia anarquista também se fez sentir nas lutas sociais.  Grande número de imigrantes, notadamente italianos, espanhóis e portugueses eram contratados por fazendeiros para trabalhar em suas propriedades, por intermédio de consulados ou agências especializadas.  Os acordos assim firmados dificilmente eram cumpridos ou respeitados, sujeitando os colonos a um verdadeiro regime de escravidão. Estes sempre deviam ao armazém do “coronel”. E quando tentavam fugir eram perseguidos e, se fossem presos, eram torturados ou assassinados, com a cumplicidade das autoridades. O trabalho de denúncia das condições de trabalho escravo nas fazendas foi feito principalmente pelo jornal La Battaglia de São Paulo, tendo ocorrido diversas greves entre os colonos escravizados e explorados no meio rural.

         Ainda sobre a presença dos anarquistas no campo brasileiro é interessante lembrar a colônia russa (ucraniana) de Erebango, no Rio Grande do Sul, que se desenvolveu a partir de um núcleo de colonos ali deixados sem nenhum recurso pelo governo, em 1911. Os anarquistas russos ali estabelecidos, desbravaram a mata, cultivaram a terra, abriram caminhos e construíram habitações.  Estabeleceu-se contato com o movimento anarquista russo no exílio, já que os bolchevistas na Rússia perseguiam os anarquistas, recebendo sua literatura (jornais, livros) com textos dos grandes teóricos russos do anarquismo, editados em Montevidéu, Buenos Aires, Canadá e nos Estados Unidos. Jornais anarquistas do Brasil, vindos do Rio de Janeiro e de São Paulo também chegavam ao Erebango, assim como aqueles publicados em castelhano, provenientes dos vizinhos Uruguai e Argentina. A partir de 1918 os anarquistas russos do Erebango já possuíam condições de se afastarem de seu local de moradia e trabalho, percorrendo outros estados do sul do Brasil, chegando até mesmo a São Paulo, fundando-se a União dos Trabalhadores Rurais Russos no Brasil.

         Ainda dentre as grandes correntes de imigração vindas para o Brasil podemos citar a influencia libertária entre os alemães ou seus descendentes. Neste sentido, um militante bastante conhecido foi Edgard Leuenroth (1881-1968), filho de um médico alemão com uma brasileira. Trabalhando desde novo para ajudar a família após a morte de seu pai, Leuenroth milita na associação de classe de sua categoria (era gráfico) em S. Paulo, a União dos Trabalhadores Gráficos. Tendo se tornado jornalista, participou de muitas greves, a principal das quais a grande greve geral de S. Paulo em 1917, que lhe valeu a prisão e o julgamento no Tribunal do Júri, onde foi absolvido. Colaborou em muitas publicações libertárias do Brasil, tendo dirigido duas delas, ambas editadas em São Paulo: A Lanterna, órgão anticlerical e A Plebe, talvez a publicação anarquista mais conhecida do Brasil. Seu irmão João, embora menos conhecido, também prestou valiosos serviços ao anarquismo no Rio de Janeiro, principalmente como administrador do jornal Voz do Trabalhador, órgão da Confederação Operária Brasileira.

         Imigrante alemão que exerceu intensa militância no Brasil foi Friedrich Kniestedt (1874-1947). Artesão na fabricação de vassouras e escovas, iniciou sua atividade anarquista ainda na Alemanha. Tendo emigrado duas vezes para o Brasil, fixou-se no Rio Grande do Sul. No Rio Grande editou O Sindicalista, jornal da Federação Operária do Rio Grande do Sul, e jornais anarquistas em língua alemã como Der Freie Arbeiter e Aktion. Como livreiro a partir de 1925, à frente da Livraria Internacional, sede do Grupo Anarquista Internacional, localizada no centro de Porto Alegre, foi responsável pela distribuição de propaganda libertária. Kniestedt destacou-se também como o fundador de  um movimento de antinazistas alemães naquele estado, o que o fez alvo de ameaças e tentativas de agressão por parte dos nazistas da colônia alemã local.  Faleceu em 1947 em conseqüência de mais uma prisão.

         Imigrantes que não pertenciam às grandes correntes imigratórias para o Brasil também merecem ser mencionados. É o caso do francês Paul Berthelot (1880-1910) chegado ao Rio de Janeiro em 1907 para assistir a um congresso de esperantistas e que resolveu fixar residência no Rio de Janeiro. Tendo viajado por vários países, Berthelot era poliglota, além de apresentar grande conhecimento em química, botânica e fisiologia. Filho de uma família rica, seus bens haviam sido esbanjados por um tutor. Tornou-se anarquista quando estudante de medicina, pondo-se a viajar pelo mundo, tendo aprendido a profissão de gráfico, que exercia para seu sustento pessoal. Tendo conseguido a colocação de professor de português e esperanto em uma escola de elite em Petrópolis, dali foi demitido quando os dirigentes da instituição tomaram conhecimento de suas ideias anarquistas. Prestes a voltar para a Europa muda de idéia e resolve seguir para o interior do Brasil (Goiás) com o fim de estudar as comunidades indígenas e possivelmente aplicar de maneira prática suas observações na fundação de uma colônia livre.  Malogrado o seu projeto, Berthelot veio a falecer em 1910 em Conceição do Araguaia.

         A assinalar ainda entre as iniciativas libertárias originárias de emigrantes não pertencentes às principais correntes imigratórias, temos a colônia Cosmos, fundada por libertários norte-americanos em Santa Catarina ao início do século XX.  Esta é uma das experiências de comunitarismo ligadas a ideais libertários ocorridas no Brasil, além da já mencionada desenvolvida por Giovanni Rossi e colonos italianos no Paraná de 1891 a 1894 e dos também italianos irmãos Campagnoli (Artur e Luciano) em Guararema, hoje na Grande São Paulo (1888 à década de 1930). Apenas para registro houve ainda um breve fluxo migratório de norte-americanos para o Brasil, ocorrido logo após a Guerra de Secessão naquele país (1861-1865) quando muitos dos confederados se estabeleceram na região norte do Brasil e no interior de São Paulo.

         No final da década de 1910, influenciada pela greve geral de 1917 em São Paulo e pela insurreição anarquista no Rio de Janeiro em 1918, outra onda de repressão aos estrangeiros que permaneceram em território brasileiro se desencadeou. Mas dessa vez, a Lei de Estrangeiros de 1919, não poupou quase ninguém. Arbitrariamente, qualquer estrangeiro que o governo federal considerasse como um perigo para a segurança nacional podia ser deportado. Eram outros tempos, revoluções socialistas se espalhavam mundo afora e a razão brasileira de Estado não poupou esforços para combater os anarquistas estrangeiros em terras brasileiras. Quanto aos nacionais, foi obrigado a desterrar para as selvas amazônicas, por exemplo, na prisão de Clevelandia, no Oiapoque, milhares de trabalhadores que acreditaram na anarquia como uma possibilidade de transformar para melhor um mundo de torturas e opressões.

 

BIBLIOGRAFIA


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FONTES DAS IMAGENS ::

Foto Colônia Cecília /-Fontes: http://www.jornaldelondrina.com.br/mundo/conteudo.phtml?id=1107474
Avelino Foscolo / Gigi Damiani / Giovani Rossi / Neno Vasco / Gigi Damiani - http://pt.wikipedia.org
Pietro Gori - http://ita.anarchopedia.org/Pietro_Gori
Gigi Damiani (documento Consulado) - http://www.gonews.it/articolo_36650_Oreste-Ristori-Nuovi-importanti-documenti-conoscere-concittadini-illustri.html
La Barricata - http://www.arquivoestado.sp.gov.br/memoria/geraimagens.php?img=%205
Oreste Ristori - http://www.gonews.it/articolo_36650_Oreste-Ristori-Nuovi-importanti-documenti-conoscere-concittadini-illustri.html
Onde está Idalina? - A Lanterna. São Paulo, 11 de mar. de 1911. p.1.